Francisco Fernandes : Infinito Nada - o Apostar de Pascal

Pascal, ele mesmo, resume o sentido do “apostar”:

Para entender as regras das partilhas, a primeira coisa que é necessário considerar é que o dinheiro que o jogadores colocaram em jogo já não lhes pertence, porque eles renunciaram à sua propriedade; mas em compensação receberam o direito de esperar o que a Fortuna lhes poderia dar, conforme as condições com as quais, de início, concordaram. 

Esta colocação muito simples que, transposta para o ambiente de uma escolha radical na vida, apresenta-nos uma face tão inesperada quanto incômoda, é o que Lacan quer nos fazer ver ao propor como referência no Seminário De um Outro ao outro o fragmento Infinito nada de Pascal.

Neste fragmento, Pascal discorre sobre a nossa relação com Deus e com a vida, como se esta fosse um jogo de azar radical, jogando com a nossa finitude na figura da morte e com o infinito implícito na posição, enigmática e inacessível à nossa razão, de Deus. 

Em Infinito nada , não se trata de um jogo como o acima mencionado, no qual podemos escolher se entramos ou não e do qual podemos eventualmente sair. Ali Pascal vai além da situação mencionada acima, típica de um jogo normal, que termina, que é finito. A pesquisa sobre a partilha diz respeito justamente a essas situações nas quais uma partida tem que se interromper antes do jogo terminar, conforme sua regra de finalização. Mas é de qualquer modo sob a forma do jogo, que Pascal coloca a situação muito mais radical na qual estamos lançados na vida: somos obrigados a jogar, a vida implica em exigências de apostar, isto é, de saída, para estarmos nela, somos obrigados a colocar algo em jogo, algo que tenha valor, muito mais precioso do que o dinheiro, do que nossas calças, enfim, algo que implica de certa maneira a própria vida ou um pedaço dela que pode ser extirpado. 

Então, o primeiro ponto importante a considerar é que o que é colocado em jogo nessa partida radical da vida se situa por seu valor e por ter sido, por nossa própria iniciativa, para que o jogo tivesse início, colocado como perdido. "O que os jogadores colocaram em jogo já não lhes pertence”, diz Pascal. Os jogos da vida ordinária são como metáforas dessa condição radical implícita na vida. Para que o jogo comece, cedemos ao Outro, no contexto acima, a Fortuna, algo nosso, que é precioso para nós, vital. Sem essa cessão não há jogo, vale dizer, é pela cessão que nos abrimos à dimensão do Outro, que a estabelecemos enquanto tal. Aqui convém lembrar o que Lacan trabalha no Seminário A angústia sobre a cessão do objeto na origem do advento do sujeito e sobre fazer de nossa castração a garantia da função do Outro enquanto tal. 

Há também a dimensão do pacto. Ao final desse pequeno trecho, Pascal nos remete a ela ao indicar que é a palavra do jogador que presidiu essa cessão do valor que institui o Outro e torna possível o jogo (“conforme as condições com as quais, de início, concordaram”). Esse “de início, concordaram”, transposto para a situação radical do Infinito nada a que Lacan procura nos introduzir, bem pode se aproximar dessa relação fundamental entre a instituição do Outro, a produção do sujeito em função de algo que se coloca como perdido e a questão paradoxal da “escolha” da neurose. É dessa relação fundamental que Pascal trata nesse fragmento. Claro, seus termos não são o Outro, o objeto a ou o sujeito, mas Deus, as vidas e aquele que aposta, que é obrigado a apostar, isto é, que está irremediavelmente constituído na situação do apostar. 

Mas há mais. Pascal nos diz “[...] em compensação receberam o direito de esperar o que a Fortuna lhes poderia dar”; “direito de esperar” – um modo curioso de falar do desejo como relação ao Outro, enquanto veiculado por uma demanda que lhe é dirigida. Mas esse Outro, a Fortuna, se se trata de jogo, tem, na alteridade que o define, a presença da figura da contingência intimamente articulada ao enigma de seu desejo, que concerne ao sujeito. Isso é próprio de um jogo e, no fragmento

Infinito nada , diz respeito aos desígnios de Deus, incompreensíveis para nós pela razão. Não se trata de um Outro que nos ama, que antecipa para nós o Bem, mas de um Outro que aciona a tiquê numa conjuntura, a do jogo, que implica nossa própria “deliberação”, quer a queiramos ou não – posto sermos obrigados a jogar; “escolha forçada”. E, no entanto, essa relação, digamos difícil, com o Outro, que sequer podemos saber se existe, é da ordem do direito, da Lei. Diríamos mesmo, é a própria Lei, já que não há outra relação possível com o Outro que não implique o risco. É nessa relação com o Outro, instituído como tal pelo consentimento de uma perda que nos constitui como sujeitos de um jogo que somos obrigados a jogar (pulsão), que recebemos nossa própria mensagem invertida. 

Além disso, numa certa aproximação que podemos fazer com Marx, com o que seria a modernidade constituída com o advento do capitalismo, temos que o que se ganha e se perde são “pedaços” valiosos de cada um, depositados, na conta da Fortuna no caso dos jogos ordinários, ou referidos a Deus, para dela ou Dele, no jogo mais fundamental da vida, recebermos ou perdermos o que foi lá depositado por cada um, por força de termos entrado no jogo. Vale dizer, o laço social, o próprio trabalho, está marcado por essa relação. O mundo do trabalho, da força de trabalho é a organização da perda, do pedaço de cada um que é seu tempo de vida, que é cedido para que a dinâmica do Capital tenha lugar. 

Para Pascal a unidade de valor no jogo da vida é a própria vida. Na relação com Deus estão em jogo “infinitas vidas, infinitamente felizes” – mais adiante entenderemos isso um pouco melhor. O Outro, a Fortuna, Deus não têm conteúdo, daí não ter muita importância Sua existência extensiva, ele é um lugar ao qual nos endereçamos e o qual introduz essa dimensão de contingência e do enigma de Seu desejo que incide em nossas vidas e as determina. 

Finalmente, e não menos surpreendente: as circunstâncias do apostar se desdobram constituindo um cálculo consistente no qual nossa relação com o acaso é passível de ser “medida” e de ser justificada de algum modo, “racionalmente”. Pascal denominou tal cálculo “geometria do acaso”. Vejamos como isso se dá. 

Quando Pascal radicaliza a situação de jogo finita com a qual iniciamos, para a situação do Infinito nada, ele mostra estar ciente e operar com o infinito. Dando, portanto, de algum modo, um passo extraordinário para a constituição da ciência moderna então nascente. Esse passo se completará com Newton, mas Pascal foi um dos que deram os passos inaugurais, com uma pertinência tão incomum, que faz dele muito mais do que um mero precursor. Em um jogo ordinário, finito, é um sujeito já constituído quem delibera; ele pode entrar ou sair, pode sair perdendo ou ganhando. Mas as coisas aí são finitas, o tempo de jogo, os valores, etc. – aí, estamos no âmbito do problema da partilha que Pascal resolveu, isto é, o de como distribuir o prêmio de um jogo, se este termina antes de ter chegado a seu final formal. Mas no que diz respeito ao jogo da vida, nós não existimos antes, nem sabemos muito bem como ele termina, embora “saibamos” (será?) que ele termina. Também não existe um sujeito que delibera se vai entrar ou não no jogo: não tem saída, em relação à vida teremos de jogar, somos condenados a deliberar pelo jogar (mais uma vez, a “escolha forçada” da alienação constitutiva). Ou melhor, somos jogados nela e o que temos é ela, a vida, já intrínseca a seu próprio jogo. Se não estamos constituídos, se iremos nos constituir no jogo, o que vai estar em jogo, senão a própria vida que... cada um supostamente tem? 

Para Pascal, a vida se dá entre dois pontos limites: o Infinito e o Nada. Começo pelo Nada. O Nada seria o caso de não se ter nascido – zero vida; nesse caso, não há... Nada, tampouco há o que dizer. O Nada também significaria o antes: um dia tendo nascido..., antes disso, onde estávamos antes de nascer? Uma vez nascidos, podemos supor um Nada. Mas, é claro que, uma vez nascidos, somos ou mais, ou menos, que Nada, mas não somos mais Nada. O fato de ter nascido implica algum vestígio, um traço, Lacan dirá, uma marca. Agora, o infinito. É claro, frente ao infinito, uma vida é quase Nada, mas não é Nada. Para Pascal há o Infinito que é uma espécie de todo, só que não é um todo fechado – ele não é, por exemplo, o universo de discurso. O Infinito é atual e, fundamental, não o entendemos; operamos com ele, pois o jogo fundamental da vida o implica, mas isso não quer dizer que o entendamos, que possamos absorvê-lo ao Saber. 

Há uma certa relação entre Deus e Infinito. Uma vez nascidos, temos acesso à nossa finitude essencial: viemos do Nada e voltamos a ele. Só que essa finitude é também uma infinitude: nossa vida, nossa pequena e limitada vida, é tão, tão pequena, somos tão, tão frágeis, enfim, somos infinitamente pequenos e perdidos. Pascal repete muito esse tipo de formulação. Só que o segundo Nada, quando nossa finitude aparece como que sabendo disso, indica aquilo que Édipo já formulara – “antes não ter nascido” –, mas aí já é tarde. Inevitavelmente fomos o traço deixado pela vida que tivemos. Ele é radicalmente tênue, mas expõe o limite radical da existência: o fato da morte – “o homem é um caniço pensante”, nos lembra Pascal. 

Esses termos compõem o cenário do apostar: o nada, nossa vida infinitamente pequena, o Outro, uma infinidade incompreensível e enigmática e a exigência de apostar. E só há duas possibilidades, ou a vida pia, na suposição de que Deus existe, ou a vida mundana na sua suposição que Ele não existe. Tais termos tratados, como já disse, até agora como dizendo respeito à condição humana, veiculando uma certa intuição existencial que temos da vida, de sua finitude – viemos da terra e a ela retornaremos inevitavelmente – pasmem, são conceitos estritamente, rigorosamente, formais. É por essa razão que, nas lições em que trata da aposta, Lacan nos adverte para guardarmos a fórmula “uma infinidade de vidas infinitamente felizes”, sem nos preocupar com o significado, religioso ou não, que ela teria. Lacan quer ressaltar a independência da démarche de Pascal de qualquer conteúdo filosófico ou existencial. Trata-se de um fato enorme: Pascal opera com o Infinito, ele não formulou o conceito (para tanto teremos de aguardar Newton e Leibniz), mas ele opera com ele, constrói um raciocínio irretocável com ele, dando-lhe uma envergadura existencial surpreendente, e absolutamente nova. Por isso, não se deixem enganar pelo suposto misticismo ou religiosidade de Pascal. Ele é tipicamente, tanto ou mais do que Descartes, um “moderno”. 

O infinitamente pequeno, a vida, o infinitamente grande, o Outro [Deus], a diferença entre os números indutivos ou finitos e os números infinitos e o zero..., são os termos que fundam a ciência moderna. Pascal é um exemplo do que Lacan dizia a respeito da uma prática não precisar estar esclarecida para operar: quando estamos diante de algo cuja discursividade é também sua prática, ou, dito de outra maneira, o significante, sendo aquilo que opera, age antes que se saiba disso. Então, antes mesmo de Newton & Leibniz, de Dedekind, de Cantor, Pascal já se vale de toda a matemática própria da ciência moderna e, sob esse aspecto, ele foi mais longe do que Descartes. Ele sabe[opera] que qualquer número operado com o infinito, em não importa que operação, não o modifica. Qualquer número multiplicado, somado, dividido, como disse, não importa a operação, dá no mesmo infinito. A única exceção sendo o zero. Pascal também sabe[opera] que o zero não é um número como os outros. Sem ser algebrista, ao contrário, sendo geômetra, ele sabe que o zero não é um número “natural”. Onde se trata do zero, sempre, este tem que ser afirmado por decreto, através de uma axiomática – não é trivial conceber a não existência “localmente”, o não ser como “entidade”, e poder designá-lo por uma letra. Então, isso não é intuitivo para todo mundo. Infinito multiplicado por zero, zero. Esta operação anula o infinito, o colapsa. Já qualquer outro número, por maior ou menor que seja, por exemplo, o tamanho de uma vida, não altera o infinito, nem o diminui nem o aumenta, ele continua o mesmo infinito. O infinito/Deus não é constituído de partes, Pascal dizia que era como “um círculo infinito cujo centro está em toda parte”, ou seja, é completamente heterogêneo a qualquer coisa que possa ser concebida ou articulada pela razão. 

A vida não realiza nenhum de seus limites, ela não é Nada, tampouco ela é Infinito – ela está entre, embora possamos apostar em obtermos “uma infinidade de vidas infinitamente felizes”, isto é, podemos apostar em estarmos próximos de Deus. O que importa é que, sendo a vida um vestígio diferencial, este, multiplicado por infinito, dá como resultado o infinito – é daí que Pascal concluirá que uma certa posição do sujeito em relação à vida, tem como conseqüência a infinitude: a posição de que a vida não nos pertence. Ela é do Outro, vale dizer, podemos “ganhar” a infinitude no caso de termos acatado com os termos do jogo da vida – que é depositá-la no Outro. 

Finalmente, não posso deixar de designar a questão do sujeito tal como Pascal a situa. A partir de Lacan, temos Descartes como aquele que isolou o sujeito em sua dependência essencial ao significante. Num certo sentido o sujeito da ciência, demarcado por ele, é o sujeito enquanto representado por um significante (não importa qual) para outro significante (também não importa qual). Poderíamos dizer que Pascal em contrapartida isola o sujeito enquanto desejo em sua articulação com o que o causa. Daí vem, é claro, a articulação que Lacan faz entre as sequências de Fibonacci e o apostar. Mas, entendamos como Pascal situa essa questão em seus termos mais gerais . 

A configuração da aposta correlaciona uma decisão quanto ao nosso modo de nos conduzirmos na vida – vida pia ou vida mundana – à existência ou não de Deus. Há quatro possibilidades, que constituem uma combinatória: vida pia & Deus existe; vida pia & Deus não existe; vida mundana & Deus existe; e, finalmente, vida mundana & Deus não existe. Não é necessário esmiuçar nenhuma dessas possibilidades para situar a evidência de que, quer queiramos ou não, na vida, caímos necessariamente em uma delas. Não há como não apostar. Por quê? 

Antes de responder, devemos entender que o ponto decisivo é o de não haver nenhuma informação que possa orientar o sujeito na aposta. Sequer sabemos se Deus existe, vale dizer, o fato de existir a Igreja, padres, uma longa tradição, nada disso, fornece qualquer indício seguro, válido sobre a existência de Deus. A probabilidade é radicalmente dividida “meio a meio”, isto é, 50% dele existir e 50% dele não existir, uma vez que não dispomos de indício que nos assegure nem uma coisa nem a outra. Então, não é possível conhecer e somos obrigados a tomar uma decisão. O que pode nos orientar aí? Vejam de que maneira, e em que ponto Pascal faz surgir a necessidade do saber, de algum tipo de saber (ele dirá um saber do coração); o de tomar uma decisão fundamental em puro risco. 

Além do mais, não se trata de determinar a probabilidade da existência efetiva de Deus – para Pascal a fé em Deus não é objeto de escolha racional; Deus é completamente heterogêneo a qualquer coisa que possa ser abordada por nossa razão, daí ser vã a tentativa de determinar Sua existência através de argumentos racionais. O que está em questão é a tomada de uma decisão para agir: ou a vida pia na suposição de que Deus exista, ou a vida mundana como se Ele não existisse. Então, está posta a questão do ato. Se a questão fosse acreditar ou não em Deus, isto é, na Sua existência, provavelmente escaparíamos ou evitaríamos o jogo. Mas a exigência é a de escolher entre dois modos de vida que se excluem, os únicos possíveis. Então, se estamos vivos, a escolha já foi feita. 

E, para concluir esta introdução geral à aposta de Pascal, o que significa “uma infinidade de vidas infinitamente felizes”? Vou me deter em apenas duas possibilidades gerais, neste ponto. Na vida mundana, o máximo que se ganha é apenas uma vida porque tudo nela se mede à razão. Não há Outro, a vida é uma e uma totalidade composta de partes, seus momentos. Ela é regida pela racionalidade, digamos, do princípio do prazer, do mercado dos bens. Já a vida pia, a que aposta na existência de Deus (o que não quer dizer que se arrogue a afirmar a existência de Deus – ela aposta na existência), o situa como uma heterogeneidade radical em relação a tudo que a razão pode conceber, vale dizer, DEUS é Outro. Se estamos constituídos em relação a esse Outro, isso significa que a vida não é uma totalidade composta de partes. Ela não é uma, ela é múltipla, isto é, a cada pequeno ato, a cada novo lance, ela se renova, é Outra vida. Isso dá conta do aspecto quantitativo da formulação “infinitas vidas...”. Mas, e o “infinitamente felizes”? O aspecto qualitativo da infinidade invocada por Pascal? Encerro com a indicação feita - há alguns anos – por Antônio Carlos Rocha, evocando Lacan em Télévision , – só o sujeito é feliz.