Ana Cristina Manfroni : A alegria, efeito de um dizer que queima

Seminário Le sinthome, 9/3/19761

ora sim, ora não, creio em parto sem dor.
Mas o que sinto escrevo. Cumpro a sina.
Inauguro linhagens, fundo reinos
— dor não é amargura.
Minha tristeza não tem pedigree,
já a minha vontade de alegria,
sua raiz vai ao meu mil avô.
......
Adélia Prado, Com licença poética

 

Lacan dá à alegria a condição de uma virtude ética. Causada por um saber - chamado de um gaio saber- que é um savoir-faire. Este é ligado ao fazer da poesia, da arte, da arte do bem-dizer. A alegria é, assim, efeito do que ele chama de ‘a arte de dizer’ – l´art-dire que desliza até o ardor l´ardeur – é um dizer que queima.

A arte é tomada por Lacan como aquilo que está no princípio do fazer, mais além do simbólico é um verbal na 2ª potência2. O savoir-faire já é, na origem de todo saber, uma articulação significante. “O S1 se articula porque tem algo da prática, que é aquilo que ele ordena, que já está tecido” 3. Isso é impressionante, certamente ultrapassa tudo o que podemos perceber em nome da linguagem. É como quando Lacan diz que o “inconsciente é um savoir-faire com a alíngua” 4. Dizer isso, me parece, é dizer que aí mesmo se trata de um fazer com5. É nesse sentido que compreendo quando Lacan diz que só somos responsáveis pelo nosso savoir-faire6. Aqui está o artefato, o artifício que pode dar ao que fazemos um valor especial. Quando fala desse valor, como um valor notável, Lacan remete ao fato de que, por não haver Outro do Outro, não poderíamos dar a esse valor o caráter de um fim último, de algo que chegou a seu paroxismo. Mas, ao contrário, é aquilo que encontra o limite de seu gozo, esse ponto onde há algo de que não podemos gozar. 

Para avançar nessa articulação, podemos partir da definição que Lacan dá à realidade psíquica7 como sendo a realidade da distância entre o Princípio do Prazer e o Princípio da Realidade. Essa distância é uma hiância, aquela que sustenta o inconsciente e que lhe dá realidade. Ele evoca a poesia dos trovadores para mostrar essa hiância como o lugar vazio do Outro requerido pelo desejo. O vazio de das Ding - a Coisa, como o impossível de tocar – onde o amor cortês, ao criar a intangibilidade da Dama, cria o impossível de simbolizar - já que a Coisa é cercada, é efeito de corte. Essa barreira que cerca, revela essa hiância, pois cria uma barreira ao saber. Há aí algo que é inapreensível.

Só que recobrimos esse vazio com signos, com significados, com imagens, o recobrimos com saber. Não recobrir essa hiância é deixar o objeto em sua existência de perda, em queda. A queda, como a pulsão nos revela, é uma queda do corpo, pois a unificação de nosso corpo, a sua unidade é só imaginária. Só podemos dispor de nosso corpo se o fizermos ser seu próprio despedaçamento, diz Lacan, se o desarticularmos daquilo que o faz um, ou seja, de seu gozo. Temos só o que resta dele: voz, olhar, fezes, seio. Tudo isso implica o ser e a barra sobre o ser, já que “a relação entre gozo e sujeito se dá porque o sujeito diz: eu sou”, no que ele se unifica. Mas no inconsciente, diz Lacan, tudo é possível, menos derivar “logo sou” 8. É esse o ponto limite da relação do sujeito com seu gozo?

Esse vazio da hiância é o desamparo – o próprio real que nos atinge em sua brutalidade. Para Lacan, a dor do “desamparo - Hilflosigkeit– é onde o homem, nessa relação consigo mesmo que é sua própria morte, não deve esperar a ajuda de ninguém”9

Lacan mostrou que na dimensão da sublimação há “uma satisfação que não pede nada a ninguém” 10. Penso se esse não seria um momento de equivalência, na perda, entre o sujeito e o objeto e uma determinação da estrutura. O que é não pedir nada a ninguém, não esperar ajuda de ninguém? Só existe desejo enquanto enunciado, e isso quer dizer que ele só se faz presente na linguagem, no pedido. E uma demanda, ela só opera ao consumar a perda do objeto.11 É pela ação do corte e mais nada, ação que revela a hiância, que o mundo se torna, para o sujeito, um mundo de linguagem, um mundo significante. Não pedir nada a ninguém talvez seja uma demanda vazia, que sequer pode tentar se satisfazer com resposta alguma, e que vai fazer valer a estrutura, a hiância, o lugar do inconsciente, do desejo, fazendo com que um sujeito deva vir tomar lugar aí.

O campo do sujeito é o da linguagem. A fala, único instrumento da prática analítica, é seu efeito. O inconsciente é também efeito da linguagem e é nisso que afirma seu estatuto ético, porque submetido às leis da linguagem. 

“O ato, na medida em que só existe por ser significante, se revela assim apto a sustentar o Inconsciente”. Lacan diz que o ato mais bem sucedido é o ato falho, “é no ato falho que fica revelado seu estatuto firmemente distinto do estatuto do fazer”12. Mas isso não é especularizável, pois não basta fracassar para ter sucesso, para ser um ato. Há aí uma dimensão de engano que é inaugurada e isso não aparece em qualquer fracasso. Essa dimensão do engano é aquela que advém pelo fato significante, já que o significante é o que engana, mas é também com ele que a verdade entra no mundo. O engano é o fato de que nós pedimos, mas na realidade não há nada a pedir. Desejamos mas não há o que desejar, há apenas que desejar. É por isso que o ato não pode ser uma ação, não pode ser um fazer. Ele é um dizer, que arde ao afirmar esse nada.

Para Lacan o chiste “nos satisfaz por se unir ao engano, em seu lugar. Ao sermos acionados pelo dizer, o riso irrompe por ter nos poupado um caminho, por abrirmos a porta além da qual não há mais nada a encontrar.” Não há nada a encontrar e rimos. Dizer que o riso aparece por que fomos levados mais rapidamente ao desamparo é muito estranho. Sabemos que, no chiste, o que se levanta, num laço social, é a barreira do recalque. O que surge é considerado o obsceno, o pecado, ao mesmo tempo em que não há nada ali. Esse nada, traço de um pecado sem gozo, me parece, é também o fundamento da alegria.

O sujeito, efeito desse ato, é causado por um fracasso, ele é aquilo que na vida renunciou à completude e se fez encontro com esse nada. Essa é a castração, a barra à unificação. É essa a descompletude do sujeito. Talvez seja isso: onde não se espera ajuda de ninguém, onde não há nada a pedir, não há mais demanda de ser, não há mais nada a encontrar. Penso que é aí que há um dizer que fará Lacan definir a psicanálise como a arte do bem dizer, e lhe conferir o saber, o gaio saber. E que é nesse ponto de fracasso e de desamparo, nesse ponto de nada, de um esvaziamento do saber e do gozo, que Lacan vai inscrever a alegria. 

A clínica nos mostra, diz Freud, que a demanda de algo é sempre demanda de felicidade. É uma demanda que nos iguala, nos faz ser como todo mundo, que pede uma felicidade onde não há diferença. Freud tinha falado de uma infelicidade comum e Lacan13 fala dessa felicidade comum, que ele vem a chamar de uma triste felicidade. 

Essa tristeza fica do lado da moral. Lacan a equivale à depressão, a uma covardia moral, a um pecado moral, mas que só pode se situar assim, a partir, ou do dever do bem-dizer - que é ético (“Só há ética do Bem-Dizer”) -, ou de nos orientarmos no inconsciente, na estrutura. E o que é que se opõe à tristeza, a essa triste felicidade?, pergunta Lacan14

É a alegria, como virtude ética, causada por um saber. Mas é uma virtude que não nos absolve do pecado, ela o contorna. Não é uma virtude moral que nos redima dele, pois esse pecado é uma falta original. É um pecado original, um primeiro ato inaugural, um recalcamento originário talvez. No Seminário da Ética, Lacan fala de três faltas: uma sendo aquela que clama por punição; outra, ligada ao assassinato do pai. Mas há ainda a falta mais importante “mais obscura e ainda mais original, cujo termo Freud chega a colocar no final de sua obra, a pulsão de morte, dado que o homem está ancorado, no que tem de mais profundo em si mesmo, em sua temível dialética” 15 Não será o desamparo esse pecado original, essa dor original? A dor é muito diferente da tristeza, o parto é um maravilhoso exemplo disso.

Essa virtude, a alegria, é causada por um saber do non sens, o gaio saber, que é o que faz dela apenas queda, retorno ao pecado, que “não compreende, não morde o sentido, mas o raspa o máximo possível para que ele não se torne um engodo para essa virtude” 16. Não será que, tornar-se um engodo é justamente dar consistência a essa virtude, fazê-la moral, oferecer-lhe um espelho? E ali onde há a perda do objeto, a queda de a, recobri-la com o nosso narcisismo, sustentar um i(a)

O que Lacan diz dessa virtude é que ela é um Bem-dizer. Não sei se é possível formular assim, mas entendo que é o bem-dizer que faz a tensão entre a virtude e o pecado, ou seja, uma virtude que, esvaziada do gozo que a faria virtuosa, tem na estrutura o mesmo lugar do pecado original.

O bem-dito, o benedictus, faz também valer que a dor de existir é o que pode se traduzir por alegria de viver. 

 

1 Seminário Le sinthome, 9/3/1976;
2 Seminário L’insu que sait de l’une-bévue s’aile à mourre, 18/1/1977;
3 Seminário O avesso da psicanálise, 20/5/1970;
4 Seminário Mais, ainda, 26/6/1973;
5 Seminário L’insu que sait.., 15/2/1977;
6 Seminário Le sinthome, 13/1/1976;
7Lacan 1967, “Da psicanálise em suas relações com a realidade” em Outros Escritos.
8 Seminário A lógica da fantasia, 21/12/1966;
9 Seminário A ética da psicanálise, 29/6/60;
10 Idem, 20/1/60;
11 Lacan 1967, “Da psicanálise em suas relações com a realidade” em Outros Escritos;
12 Idem;
13 Televisão, 1974;
14Idem;
15 Seminário A ética da psicanálise, 18/11/59
16 Idem;